Sou
Ainda sou
Irmão do chão
Onde piso
Filho da terra
Onde estou
Sou como estes claros silêncios
Que escolhi ouvir
E que também me ouvem
Por saberem minha voz
Esses entendem as razões que tenho
De retornar em vento
E dividir lamentos
Bordoneando solitário
Junto as cordas do alambrado
Uma milonga que ainda insiste
Em dar vida
Pra um verso que nunca fiz
Sou a mesma tira de tento
Da lonca dos desenganos
Que atei na idade dos anos
Junto a forma das esporas
Um par de esporas de potro
Meus iguais
E tantos outros
Irmãos de sina e de esterro
Que a sombra escura do medo
Não deixa mostrar o rosto
Sou feito a crina do potro
Presa ao cincerro do grampo
Que entende ser o arame
Divisor das liberdades
Nas sentidas igualdades
Que buscam os olhos do campo
Sou a poeira que levanta
Pra reinventar os caminhos
Mudando a forma do pago
Por sobre o lombo dos ventos
E as geografias antigas
E não sabiam fronteiras
Refazem seus argumentos
Ganhando cismas de tempo
Pra renascer nos ponchos
Nos pelos, nos ferros
Das esporas
Na copa há muito judiada
Dos chapéus de andar tropeiro
Sou rio em caudal de espinhos
Que turbulento passa
Sem perceber a barranca
Bem onde a flor alma branca
Cabe pétalas sentidas
Talvez prenunciando a vida
Talvez sonhando uma espera
Do amor em asas abertas
Que despertou primaveras
Na ingênua face de um beijo
Sou como a simples razão das luas
Emprestam a forma dos ranchos
Feitos de antigos
De barro, sereno e santa fé
E acolhem frágeis encantos
Na humildade dos filhos
Na paz dos tocos de velas
Que iluminam as preces
Na forma de sinais santos
Ou que protegem os assombros
Das intenções da infância
Sou a lacrimada palavra
Que se despede da alma
Para habitar um adeus
Que não prendeu seu aceno
Que a seda do lenço branco
Redesenhou na porteira
Paciente e verdadeira
Com imagem de quem fica
Corajosa e solitária
Como a imagem de quem vai
Sou o mesmo véu de sereno
Que acorda em alva pele de geada
Com seus mistérios de frio
Cristalizando uma lágrima
Que desprendeu-se da noite
Ou do silêncio de estrelas
Pra revelar-se inteira
Sobre o secreto dos pastos
Benzendo as horas dos cascos
E endurecendo os passos
Das barbudas alpargatas
Que manifestam as razões
De reencontrar seus caminhos
Antes dos olhos do Sol
Sou o suor que escorre
Nas faces os seus feitiços de sálvia
Derramando esperanças
Na força bruta dos pulsos
Justificando a tentativa humana
De ferir a terra
Pra plantar sementes
Pra colher o fruto
E transformá-lo em pão
Sou a identidade do negro
Na gesta dos seus primeiros
Na formação do seu tempo
Na dor do encanto que tenho
Que se reflete em amor
Junto ao perdão ajoelhado
De quem não sabe ser prece
De quem não tem uma cruz
Antes avesso da luz
Por compreender os escuros
Hoje, avesso aos escuros
Buscando o incerto da luz
Aroma perfumando o aroma da pele
Onde as pétalas por certo não cor
Sou, sou teu igual
Genuíno, irmão do chão onde piso
Filho da terra onde estou